Após fim de convênio, Registro de Câncer da cidade de São Paulo está com serviços suspensos há mais de dois meses

Convênio entre a Prefeitura de São Paulo e a Faculdade de Saúde Pública da USP acabou em junho. Prefeitura diz que vai publicar edital ‘em breve’ para renovar contrato. Fim do contrato entre USP e prefeitura pode prejudica dados sobre câncer
Responsável por manter as informações mais detalhadas sobre a incidência e a mortalidade de todos os tipos de câncer na população paulistana, o Registro de Câncer de Base Populacional de São Paulo (RCBP-SP), um serviço criado há mais de 50 anos pela Universidade de São Paulo e que mantém desde 1997 uma série ininterrupta de dados sobre a doença, está suspenso desde 30 de junho.
O motivo foi o fim do convênio mais recente entre a Prefeitura de São Paulo e a Faculdade de Saúde Pública da USP, que teve cinco anos de duração. Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde da capital afirmou que um novo convênio só pode ser firmado após uma seleção pública, e que vai publicar o edital “em breve”, e que não haverá corte nos recursos destinados ao programa (leia abaixo a íntegra da nota).
Após ser procurada pelo SP1, a secretaria publicou, na edição desta terça-feira (1º) do Diário Oficial, a portaria constituindo a comissão responsável por elaborar a chamada pública e o novo contrato de prestação de serviço.
“São convênios de cinco anos que são renovados automaticamente todo ano”, explicou Oswaldo Tanaka, diretor da Faculdade de Saúde Pública. “Esse ano, havíamos completado cinco anos. E habitualmente, até agora, a gente renovava um convênio a cada 5 anos. Mas dessa vez eles nos informam que vão mudar a lógica e pretendem fazer um edital de concorrência pública.”
A concorrência pública é uma exigência legal em casos como esse. No último ano do convênio, a Prefeitura investiu R$ 972.078 pelo pagamento do salário de 14 funcionários. Já a faculdade se responsabiliza por todos os demais gastos de espaço e mobiliário. A coordenação do registro é feita pela professora Maria do Rosário Latorre, da própria faculdade.
Estudo do impacto da pandemia
Especialistas em epidemiologia explicam que os impactos da pandemia do novo coronavírus, principalmente os indiretos, levarão anos para serem devidamente conhecidos, e alguns jamais poderão ser quantificados em detalhes.
No caso dos pacientes de câncer, um dos efeitos já previstos, e que já começam a ser percebidos de forma preliminar, é a queda na realização de exames de diagnóstico.
Esses exames, principalmente biopsias, são realizados quando o paciente já é um caso de suspeita de câncer, porque já apresenta sintomas ou resultados de outros testes que indicam a possibilidade de existência de um tumor.
Já os exames de rastreio são os de rotina, como mamografias, que busca por indícios de anormalidades na mama, no caso das mulheres, e o PSA, que faz o mesmo para a próstata, no caso dos homens.
Em março, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) publicou uma nota técnica recomendando a suspensão temporária dos exames, principalmente os de rastreio, por causa da quarentena. Em 10 de julho, uma nova nota foi publicada, indicando a necessidade de cada local avaliar o estágio da epidemia e o grau de susceptibilidade dos pacientes, para contrabalancear os riscos de exposição ao vírus com os riscos da subnotificação de novos diagnósticos de câncer.
Além das recomendações e cancelamentos de consulta, outro efeito é a queda na procura de atendimento pela população, por medo de contaminação pelo vírus que provoca a Covid-19.
O astrônomo Cassio Barbosa, que já teve câncer de pele, tem seguido à risca as recomendações de isolamento social, mas abriu a exceção para visitas médicas e exames de prevenção.
“Todo ano eu faço de câncer de próstata e a cada seis meses de pele, check-up pra câncer de pele também. O câncer é silencioso… Quando menos espera ele já atacou, então sempre mantenho o controle e prevenção”, afirmou ele.
A oncologista Aline Rocha Lima reforça a orientação. “Faz muita diferença diagnosticar um tumor semanas antes, ou meses antes. O tumor mais precocemente diagnosticado, maior a chance de cura”, explicou ela.
A médica ressalta que, por causa da pandemia, a queda de diagnósticos precoces de tumores malignos, e o consequente aumento dos diagnósticos da doença em estágios mais avançados, deve aumentar a taxa de mortalidade do câncer já em 2020 e pelos próximos anos.
Balanço parcial já aponta para a queda de exames
Dados preliminares do Ministério da Saúde levantados pela produção da TV Globo já indicam uma queda no total de exames de diagnósticos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS) na capital no primeiro semestre deste ano, em comparação com o ano anterior. Nesse período de 2020, foram feitas pelo menos 58.739 biopsias e punções.
Por enquanto, a redução é de 47% em relação a 2019. A queda ocorre desde janeiro, mas se acentuou entre abril e junho, com pico em maio, segundo os dados já disponíveis. Os números podem aumentar, já que os hospitais têm três meses para enviar as informações referentes aos exames realizados, e pandemia pode resultar em um atraso maior nas notificações.
Atualmente, os únicos dados existentes nacionalmente são os da rede pública, já que a lei promulgada em 2018 que prevê a notificação obrigatória de novos casos de câncer ainda depende de regulamentação. A TV Globo procurou o Ministério da Saúde em 26 de agosto para saber qual é o prazo para regulamentação, mas não recebeu retorno até a publicação da reportagem.
Trabalho atualmente é voluntário
Na cidade de São Paulo, porém, é justamente o Registro de Câncer que garante que os dados de hospitais e laboratórios privados também sejam coletados e computados, já que, no decorrer de décadas, ele montou uma rede de compartilhamento voluntário de informações atualmente com quase 300 instituições diferentes.
E é a partir dele que, nos próximos anos, pesquisadores e pesquisadoras poderão entender como a pandemia afetou os diagnósticos, e que políticas públicas devem ser feitas para aumentar a prevenção da doença especificamente nos grupos demográficos e regiões geográficas mais afetados da cidade.
Ele funciona da seguinte forma: 289 instituições de saúde, como hospitais, clínicas e laboratórios, particulares e públicos, enviam informações sobre os casos de câncer na cidade para a equipe que trabalha na Faculdade de Saúde Pública da USP.
Essa equipe organiza, faz comparações com os dados e consegue descobrir, entre outras coisas, quais regiões da cidade têm mais incidência de câncer de próstata ou de mama, por exemplo. Essa informação é usada para fazer mais pesquisa e para orientar as autoridades de saúde a direcionar melhor as políticas públicas.
Mas, enquanto o registro não volta de forma oficial, os 14 funcionários da faculdade que atuavam na coleta, sistematização e divulgação dos dados, e que foram demitidos após o fim do contrato, têm se revezado para trabalhar voluntariamente na recepção dos dados, que seguem sendo enviados pelas centenas de instituições que participam da rede de troca de informações.
Uma delas é a administradora de dados Iza Sconza, que desde julho tem ido alguns dias por semana à faculdade para ajudar a evitar a interrupção da série histórica do registro.
“Os hospitais, eles não sabem do fechamento, do encerramento do registro com a secretaria”, afirmou ela. “Então eles continuam mandando dados para nossa plataforma, eles continuam mandando portador entregar as fichas preenchidas. E alguém tem que estar aqui pra receber isso. Então é por isso que a gente está aqui mantendo esse esforço de tentar manter esse registro vivo. Porque ele faz parte da história não só de São Paulo, como do país.”
Leia a íntegra da nota da Secretaria Municipal da Saúde:
“A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, informa que o Registro de Câncer de Base Populacional de SP (RCBP) engloba centros sistematizados de coleta, armazenamento e análise da ocorrência e das características de todos os casos novos de câncer na população. Tem por objetivo conhecer o número de casos novos (incidência) de câncer, sua distribuição e tendência temporal na população pertencente à área geográfica de sua cobertura. As informações produzidas pelos RCBPs subsidiam estudos epidemiológicos para identificação de populações de risco e permitem medir a eficácia de programas de prevenção e controle do câncer. Os RCBPs, em sua maioria, utilizam o sistema para informatização dos dados nos RCBP – SisBasepopWeb (BPW) , desenvolvido e disponibilizado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), para estruturação de suas bases de dados e gerenciamento do processo de coleta e produção de informações. Para obtenção dos dados disponíveis, é possível utilizar o tabulador das informações dos RCBP.
A Lei que estabelece a notificação compulsória de agravos em saúde relacionados às neoplasias entrou em vigor em 2018 – Lei nº 13.685 – e o município estava com termo de convênio válido até 2020, quando se previa que a regulamentação desta Lei já estaria vigente. O termo de convênio venceu em 30 de junho deste ano, mas como a regulamentação desta Lei ainda não foi publicada pelo governo federal, a comissão de chamada pública do município teve de ser constituída, visando manutenção do serviço de Registro que beneficia indiretamente os munícipes, por meio da definição de diretrizes de políticas de prevenção e tratamento oncológicos.
O edital de chamamento, após os trâmites legais, será publicado no Diário Oficial da Cidade (DOC) e divulgado em jornais de grande circulação em breve, contemplando os preceitos de transparência e economicidade e prevendo maior agilidade tanto na obtenção dos dados quanto na entrega das propostas. Tudo será feito sem ocasionar prejuízos às ações de Assistência à saúde dos pacientes, decorrentes dessas análises. Também não estão previstos cortes de verbas para registro desses dados oncológicos e acompanhamentos desses casos. Desta forma, também os dados existentes até o momento não serão perdidos.
A Pasta ressalta que não haverá prejuízo à assistência aos pacientes oncológicos, os quais continuam a ser tratados normalmente dentro da linha de cuidados, com o devido tratamento oncológico referenciado.
O RCBP atua no sentido apenas de registrar os casos em uma base de dados e fazer análises, não interferindo no atendimento dos casos oncológicos.”

By Midia ABC

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