Profissionais afirmam que passaram a sofrer episódios de preconceito e que passaram a evitar o uniforme fora do ambiente de trabalho. Eles também falam do desgaste emocional provocado pela rotina de mortes e pelo trabalho intenso no combate à doença. Antonio Márcio é auxiliar de enfermagem e atua no combate à Covid-19
Antonio Márcio Silva Piovesan/Arquivo Pessoal
Em quatro meses de pandemia do novo coronavírus (Covid-19), profissionais da saúde do Alto Tietê viram suas rotinas mudar completamente. Os aplausos, antes dedicados como forma de homenagem, deram lugar à discriminação. As mortes, que não eram tão comuns na rotina de trabalho, agora fazem parte de todos os plantões.
Enfermeiros e técnicos de enfermagem declaram, inclusive, que deixaram de usar os uniformes fora do ambiente de trabalho por receio dos episódios de preconceito. Eles também afirmam que passaram a lidar com o medo constante de serem contaminados e de perder algum paciente, colega ou familiar para a doença.
Na semana em que o Alto Tietê chega a mil mortes pela Covid-19, o G1 ouviu três profissionais da região que relataram o que mudou desde o início da crise sanitária. Do heroísmo à exclusão, da coragem ao medo de perder a batalha: eles relatam situações de preconceito, o constante luto por pacientes e as rotinas desgastantes, dentro e fora do ambiente de trabalho.
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De heróis a alvos de preconceito
Antonio Márcio da Silva Piovesan tem 37 anos, mora em Mogi das Cruzes e atua na unidade crítica do Hospital Santa Marcelina. Auxiliar de enfermagem, ele lida diretamente com os pacientes contaminados pelo novo coronavírus. No início da pandemia, o trabalho árduo e a nova rotina eram compensados pelas constantes homenagens à classe. No entanto, segundo ele, isso mudou.
O profissional afirma que passou a vivenciar episódios de discriminação e que hoje, assim como outros colegas da categoria, se sente um monstro: a população tem medo de que ele carregue o vírus, prefere manter distância e até o exclui.
“No começo nós éramos heróis. Hoje em dia sofremos preconceito, discriminação, de muitas vezes você não poder sair da sua casa para trabalhar de branco. Tem que ir com outra roupa, porque aplicativo não para, ônibus não para. Quando o ônibus para, você sobe e todo mundo te olha diferente”, desabafa.
“Quando você sobe de branco no ônibus, todo mundo te olha diferente, como um monstro”, diz Antonio.
Ele conta ainda que tem evitado o transporte público para não vivenciar esses momentos novamente. “Sofremos no transporte, na rua. Todo dia eu vou de carro, estou gastando um pouco a mais, para evitar esses constrangimentos que a gente vem passando por aí”, completa o auxiliar.
Um técnico de enfermagem da cidade, que também pediu para ter a identidade preservada, guarda outros relatos semelhantes por causa da profissão. Além da discriminação da própria família, que precisou se distanciar desde o início da pandemia, ele afirma ter sido vítima quando procurava por uma nova moradia.
“Desde o começo, quando começaram a vir notícias de preconceito, das pessoas estarem sofrendo represálias, eu parei de usar o branco. Quando eu usava o transporte público, ia com roupa comum e me trocava no trabalho. Essa semana eu ia compartilhar um apartamento com uma pessoa, morar junto. A pessoa estava locando um quarto, mas quando ele descobriu que eu trabalho como técnico de enfermagem, ele desistiu da locação com medo de eu levar o vírus”, relembra o rapaz.
Segundo Rodrigo Romão, diretor do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo, reclamações como essas se tornaram um problema comum. Ele afirma que no início da pandemia a maior parte das queixas dos profissionais envolvia a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) e as condições de trabalho. Hoje, viraram desabafos.
“No início da pandemia a população bateu palma para os profissionais. Hoje ela vê como um vírus ambulante. O motorista de ônibus, quando vê um profissional de enfermagem, não para no ponto. Eu tive relatos de profissionais que moram em prédio, que deixaram bilhete no vidro do carro falando para sair dali, porque ela era um risco para o condomínio”.
“Além de nós sofrermos diariamente cuidando de famílias que nem conhecemos, a gente está nesse momento apreensivo do preconceito, da sociedade discriminar a gente”, completa Romão.
O professor e coordenador do curso de enfermagem da Faculdade Piaget, Luiz Fernando dos Santos Messias, explica que o uso da roupa branca fora dos hospitais é permitido. Ele lembra que, dentro do ambiente de trabalho, os profissionais usam equipamentos que protegem a vestimenta, como é o caso do jaleco.
Esse sim, segundo Messias, deve ser usado exclusivamente no ambiente hospitalar, porque pode oferecer riscos de contaminação, tanto ao paciente, quanto ao profissional que o atende, conforme apontou um estudo realizado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) em 2010.
“[O estudo] verificou que os jalecos desses profissionais médicos possuíam uma colonização de bactérias, principalmente bactérias Staphilococcus aureus, que são aquelas mais responsáveis por infecções hospitalares”, explica.
No Estado de São Paulo, os médicos e enfermeiros com o jaleco em ocasiões que não sejam de atendimento podem ser multados em 10 (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESP), o que atualmente corresponde a R$ 276,10. A norma é estabelecida pela Lei 14.466/2011.
“A ideia principal é que não seja confundido o jaleco com a roupa branca. A roupa branca, tradicionalmente e historicamente, está relacionada a você ter uma aparência higiênica. O jaleco e os aventais são destinados para a proteção dessa roupa”, completa o coordenador.
Dessa forma, a roupa branca deve estar sempre protegida durante o atendimento e pode ser usada, sem oferecer riscos, fora dos hospitais, segundo Luiz. Ele também destaca a importância dos cuidados na remoção do acessório e da higienização das mãos.
“Mais importante que isso, temos o uso da técnica adequada para retirar esses materiais considerados equipamentos de proteção individual, além da lavagem das mãos. Há sim uma grande discussão sobre a contaminação do jaleco, mas não questionado sobre a roupa branca. A roupa branca não está indicada para assistência direta ao paciente em risco de contaminação. Tem que usar um avental, seja ele descartável ou mesmo de tecido reprocessado, usado na técnica e lavado a mão posteriormente. Se isso trouxesse problema, os próprios profissionais ficariam doentes o tempo todo”, conclui.
Luto diário e desgaste emocional
A discriminação não é a única reclamação entre os profissionais da saúde. A morte dos pacientes e o luto constante também passaram a fazer parte do dia a dia de quem luta, na linha de frente, combatendo o novo coronavírus. O desgaste emocional é alto e se confunde à vontade de continuar cuidando do próximo.
“Mexe completamente com o psicológico da gente. Não tem um dia que eu não chore depois que eu saio do plantão”, comenta a enfermeira de Mogi das Cruzes.
Com mais de 17 anos de experiência e atuando em dois hospitais de referência ao coronavírus, ela afirma que nunca se planejou para viver algo parecido. A profissional lida diariamente com pacientes graves e que, em um momento tão difícil, convivem com a solidão do isolamento.
“Minha vida mudou completamente. Eu sou enfermeira emergencista, trabalhava na emergência de um hospital com adulto e criança. Trabalhava em outro só com criança. Atualmente sou enfermeira da UTI [unidade de terapia intensiva] de uma referência de Covid porque a situação me obrigou a isso. Não tinha profissionais o suficiente”, comenta.
Essa é a primeira vez que a enfermeira atua em uma UTI. Ela conta que, antes, o número de intubações era mínimo, mas que agora o procedimento é parte do trabalho diário. Ver pacientes em sofrimento e lidar com a perda deles, também virou rotina.
“Eles têm muita falta de ar, então a gente vê que ele está sofrendo para respirar. Quando chega no período crítico mesmo, que chega ao extremo, o doutor conversa com esses pacientes antes de serem intubados. Muitos deles, antes da intubação, agradecem a gente. A gente fica emocionado com isso. Tem muitos que se demonstram muito apreensivos e a gente tem que dar um apoio”, comenta.
“Um paciente desses, que a gente tem essa relação de perto, ver tudo acontecendo e logo depois saber que ele faleceu durante o plantão, depois de um procedimento que não deu certo. É muito difícil ir embora para casa. Sempre a gente fica lembrando daquilo”, completa.
“É uma rotina que a gente não estava acostumado. A gente está vendo muita morte”, declara a profissional.
Antônio Márcio conhece e presencia essa realidade de perto. Mais do que isso, o auxiliar de enfermagem viveu na pele o medo da Covid-19. Além de contrair a doença e ter 60% do pulmão afetado, ele viu a tia, a filha e a esposa serem infectadas.
“Eu contraí a Covid. Estou em recuperação ainda, não voltei ao trabalho. Foram dias e noites que pareciam ser intermináveis. Sofri bastante. Muita falta de ar, muita náusea, vômito. Muitas dores no corpo. A gente que vive no meio da área da saúde, a gente está vendo agora o quão grande é a importância da gente estar se cuidando”, comenta.
Um técnico que preferiu não se identificar também foi contaminado pela Covid-19. Ele afirma que sofreu negligência por parte do hospital em que trabalhava, em Mogi das Cruzes, e por isso preferiu pedir demissão. Hoje trabalha em um hospital na capital.
“Recebi todo descaso possível de todas as partes, chorei de desespero dentro de um banheiro por ter dor e ninguém fazer nada por mim. Onde eu deveria ser atendido como qualquer cidadão necessitado de atendimento assistencial, por ser funcionário, tive um atendimento diferenciado negativamente”, relembra.
Entre medos, dificuldades e a esperança em cada recuperação, os profissionais seguem atuando na expectativa de que a crise passe logo.
“Não é uma coisa que eu esperava para a minha vida. Não é uma coisa que eu desejava, mas foi necessário. Está sendo bem ruim. Não vejo a hora disso acabar para voltar pra minha vidinha antiga”, conclui a enfermeira.
“Estamos fazendo nosso melhor. Quem está lá é o amor de alguém. É o pai de alguém, é o filho de alguém. Estamos tentando fazer nosso melhor para dar condições e deixar aquela pessoa sair de lá bem”, diz Antonio.
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‘No começo éramos heróis’: Profissionais da saúde relatam preconceito, luto e desgaste após quatro meses de combate à Covid-19
